Na beira de um lago havia duas figuras em um banco comprido , daqueles do programa "A Praça é Nossa". O da esuqerda era estreito, pálido, estatura mediana e chapéu branco na cabeça. O da direita era engraxate. Tinha uma caixa na mão e a juventude na cara. Mas o cara estreito estava com os sapatos muito bem engraxados, tão bem que talvez apenas o melhor engraxate da região pudesse engraxá-los com maior perfeição. Por isso, não deu atenção ou importância ao moleque bem ao seu lado.
Este cenário estatizou-se durante exatos 16 minutos. Pelo cara da esquerda, teria continuado assim por 32 minutos ou mais. Felizmente, esta não era a sua história, era a minha.
Foi quando o moleque levantou-se, atraindo como um íma a atenção do outro e desatraíndo-a consequentemente do jornal acinzentado. Apanhou uma pedra, lançando-a contra o espelho formado pela água. Com um percurso obscuro, a pedra naufragou, antecipada, fazendo com que o garoto começasse a procurar uma outra pedra qualquer. Neste momento, o outro se pronunciou:
- Por que perdes tempo ao invés de trabalhar para ajudar a tua família?
O comentário deixou o engraxate numa mistura de confusão e surpresa, dizendo:
- O senhor conhece minha família?
Então, o dito "senhor", e aparência fina e modos elegantes soltou uma risadinha e voltou ao seu papel cinzento.
...
Um minuto passara e o garoto permanecia ali, perdido. Afinal, o que aquele riso significava? O memnino pensava: "Eu devo intrigar, de alguma forma, este senhor, devo ser parecido com alguém que o faz feliz". Pensado isto, tornou seu olhar para a aparente estátua pensante do jornal no colo.
-Moço? - perguntou.
-O que foi?
-Quer engraxar os sapatos?
- Não, obrigado.
E, ao fim do breve diálogo, soltara outra fraca gargalhada incompreendida por parte de seu observador.
-O quê, afinal, eu faço que sempre acha graça do que digo?
-É o teu jeito, garoto. Que nada entende. Não enxergas o brilho dos meus sapatos?
-Foi um belo trabalho, senhor.
-E deseja engraxá-lo melhor que o feito?
-Não, senhor. Digo, outro par de sapatos.
-Mas eu só tenho dois pés!
Foi a vez do menino soltar uma risada ligeira, tanto foi a ponto de incomodar o homem. Como uma lâmina de angústia e antipatia, que separou o jornal de seu dono, pela natureza da risada.
-O que foi, moleque? Qual o motivo da graça?
-Você é gozado demais. Não fala o que pensa saber falar. Só o que fazes é contradizer-se. Tudo que dizes é ditado neste papel aí? - disse, referindo-se ao jornal, agora em cima do banco.
-É claro que não! Tudo o que está escrito aqui são notícias, atualidade, informação! Uma coisa muito útil para alguém de sua idade, a propósito. - Uma brisa mais forte soprou, fazendo com que o jornal pousasse sobre o lago. - Se estivesse seco, pelo menos. E... o que quer dizer com "contradição"? Esta sua protelação me angustia. Faz isso com todo mundo?
- O que quer dizer com protelação?
-O que é "contradição"?
-Quer mesmo a definição?
- Quero apenas saber o que quis dizer com isso.
-Quis dizer que, apesar de, como você mesmo falou, ter apenas um par de pés para serem vestidos, certamente possui dezenas de outros pares que poderiam estar sendo calçados agora. E agora mesmo, há pés descalços, como os meus, mas, olhe que hironia, sou engraxate! Se ao menos tivesse um par de sapatos, poderia treinar minha habilidade neles, mas infelizmente tive que aprender na prática, por isso várias vezes já quase morri de fome. Não agora, que sou bom nisso. Bom suficiente para me garantir sempre que saio de casa.
- E por que não compra um par de sapatos para que não lhe doam os calos?
-Para que os outros se toquem diante minha situação e o trocado aumente um pouco. Além disso, os calos não mais me incomodam. E a maioria das pessoas não percebem que ando sem calçados, simplesmente não faz diferença para elas, e eu entendo tudo isso, mais do que você entende, sabe?
- Nossa... o que você acabou de dizer, além de tudo, denomino inspiração. . .
-Insp. ... mas o que significa protelação?
- Sabe, menino, às vezes não sente vontade de escrever, vontade de explicar a milhares de pessoas pelo mundo tudo iso que me disse agora?
-Não, nenhuma. Acabei de dizer que entendo as pessoas, por não se importarem com meus pés frios e com calos, mas acha mesmo que é do meu desejo tornar-me um deles?
-Não é isso a que me refiro! - retrucou o homem, esbravejando por dentro, por tamanha ofensa que o moleque lhe proporcionara.
-Sinto muito, mas realmente não, senhor. Meu jornal são os meus clientes, e falo com eles ao invés de escrever para estranhos. Minhas poesias surgem em cada sapato que lustro, dou vida e liberdade. Não vai dizer-me o que é protelar?
A esta altura o homem de chapéu branco pasmava-se pelo mundo que um mero engraxate de sapatos, ainda mais um moleque, poderia enxergar em sua simples tarefa
engraxativa. Com um sorriso, embora um sorriso diferente, exitou-se, para, enfim, amargurar-se:
-Não faço ideia do que seja isso.
Passaram alguns poucos minutos, que eu não faço ideia quantos representaram para os personagens, na situação em que encontravam-se. Neste momento insólito, indiscriminativo e coisas mais, onde o menino e o "senhor" sentados pareciam sobretudo inertes a tudo que relacionam vida, movimento e emoção, um cliente chegou.
Sentou em um banco mais distante, celular na mão e o trabalho na boca. Observou a cena e chamou o menino, que levantou-se, num pulo, e retirou-se do banco mais próximo do lago, levando consigo a caixinha com o trabalho embutido. O homem de chapéu fez o mesmo, indo para a direção oposta a do menino, ainda intrigado.
- Faz o melhor trabalho que puder, filho. - disse o camarada, com ares de patrão bonzinho.
- Pode deixar, senhor.
-É verdade que é você o melhor engraxate da região?
- É, sim, senhor.
-E qual o valor do seviço?
-Quanto achar justo, patrão.
Um momento passou, ali. Com o sapato novo em folha, deu generosos cinquenta reais ao garoto, parabenizando-o. E disse:
-Você tem futuro, garoto.
O garoto lembrando da conversa anterior, então, disse:
-Na verdade, qualquer futuro para mim será gratificante contanto que eu também tenha presente. - disse, profundamente satisfeito. E o homem o celular pronunciou-se:
- Alguém por acaso já lhe disse que o nome disso é inspiração?
O menino pensou um pouco, olhou para os pés descalços e o homem, ainda mais elegante que o anterior, e disse:
- Costumo dizer que inspiração são os sapatos que eu lustro.